Em celebração aos 150 anos de nascimento da Dra. Maria Montessori que aconteceu no dia 31 de agosto de 2020, a BBC fez uma reportagem falando de alguns aspectos da Pedagogia Científica criada por ela. Infelizmente a reportagem trouxe uma visão limitada e com pouco ou nenhum embasamento. Ela está anexada abaixo.

https://www.bbc.com/portuguese/geral-53972711?at_medium=custom7&at_custom2=facebook_page&at_custom3=BBC+Brasil&at_campaign=64&at_custom4=5B7CED18-EF78-11EA-A1FD-E0D696E8478F&at_custom1=%5Bpost+type%5D

Desta forma, houve uma mobilização da comunidade brasileira para deixar claro os erros cometidos na reportagem que estão descritos na carta anexa que o Gabriel Salomão fez em nome da Organização Montessori do Brasil:

“São Paulo, 8 de setembro de 2020.

Há poucos dias, comemoramos 150 anos do nascimento de Maria Montessori. Dias depois, a BBC Brasil veiculou reportagem da BBC Mundo sobre a vida de Maria Montessori. Em ocasião de comemoração para um movimento que sobrevive e se fortalece com as décadas, a BBC escolheu uma reportagem que ressalta polêmicas e detração, em lugar de um texto que ressaltasse a sobrevivência de ideias, o feminismo de vanguarda e a ciência inaugurada por Maria Montessori.

Nesta resposta, para que seja útil para a BBC e o movimento montessoriano do Brasil, ressaltamos alguns erros cometidos, e depois sugerimos uma abordagem para reportagem futura. O texto se inicia com a sugestão de que Montessori teria primeiro trabalhado com crianças “desfavorecidas” para depois “adaptar sua metodologia para crianças em geral”. O erro conceitual em que se incorre é supor que crianças pobres não sejam crianças em geral.

A proposta de Montessori ao aceitar o convite para iniciar sua Casa das Crianças em São Lourenço, bairro muito pobre de Roma, em 1907, visava precisamente experimentar ideias e princípios, desenvolvidos com crianças vindas de instituições psiquiátricas, com um público infantil mais amplo. Posteriormente, houve muito mais uma disseminação do que uma adaptação.

De fato, Montessori defenderia ainda em 1936, em seu livro “O Segredo da Infância”, que as descobertas feitas em São Lourenço permaneciam verdadeiras depois de testadas com crianças de muitos países e todos os estratos sociais.

Um novo erro, advindo de um levantamento de dados insuficiente é a citação de que o fundador da Wikipedia teria estudado em escola montessoriana. O mito, arraigado, é desmentido por Jimmy Wales ele mesmo… em sua página na Wikipedia. O argumento midiático de que Montessori serve a uma elite criativa é usado desde 2009, com crescimento considerável desde 2011, e nos Estados Unidos serviu principalmente para se defender a ideia de que é uma educação promotora da criatividade e da inovação, em um discurso atravessado pela ideologia do empreendedorismo.

No texto de Velasco, o mesmo argumento é utilizado na direção oposta, ao se defender que somente esses futuros bilionários têm acesso a Montessori. Esquece-se de mencionar, entre outros exemplos, Gabriel García Marquez, que estudou em uma escola de interior, bem pequena e com pouca estrutura, com uma professora montessoriana que mudou sua maneira de ver as letras e, para nossa sorte, a escrita.

O interesse no argumento dos bilionários é reverter o tempo: porque são bilionários hoje, e estudaram em escola montessoriana ontem, Montessori é só para bilionários. Esquecendo-se que os cofundadores do Google e o da Amazon só entraram para as listas da Forbes depois de adultos.

É verdade que a educação montessoriana hoje chega a poucas crianças. Como tudo o que chega a poucas crianças e que é bom, também a educação montessoriana chega, principalmente, a crianças que são também favorecidas de outras maneiras. Isso não é um fenômeno exclusivo de Montessori, ou atípico de qualquer maneira, e tem pouquíssimo de comum com Montessori, mas muito em comum com a enorme desigualdade que nos assola. Vale mencionar, entretanto, que já temos alguns milhares de escolas públicas montessorianas no mundo, e municípios inteiros no Brasil que começam a utilizar aspectos de Montessori em suas escolas, com o interesse, o desejo e ações na direção de uma implementação total desta abordagem pedagógica.

Cursos de formação por todo o Brasil têm recebido cada vez mais professores de escolas públicas e iniciativas formadas por estes professores e outras pessoas têm brotado, afortunadamente, por todo o país. Nos locais onde a transformação mais profunda foi possível, houve apoio do poder público. Com esforço, isso vem sendo conquistado também aqui.

A reportagem constrói a noção de que se apoia sobre uma séria biografia, recém publicada, por Cristina de Stefano, que eu infelizmente não li desde sua publicação, em julho deste ano. Mas não cita uma só passagem da biografia, mas seleciona trechos de uma entrevista concedida pela biógrafa.

A rasa manchete da BBC propõe que a vida de Montessori foi paradoxal, enquanto que Stefano expõe com a profundidade devida: sim, o paradoxo existe, mas não elimina a coerência. Conquanto o método esteja fora do alcance de muitas crianças, ainda hoje ele “é usado para ajudar, por exemplo, crianças que passaram por guerras. Ainda há pessoas que continuam aplicando seu método para ajudar crianças em dificuldade”. A reportagem segue para apontar a “incoerência” de Montessori não ter criado Mário, seu filho, até a adolescência, e ter sido uma mulher que “nos ensinou a valorizar, respeitar” crianças.

Vale apontar dois aspectos aqui, parcialmente trazidos nos trechos selecionados da entrevista de Stefano, mas parcialmente omitidos pela redação da reportagem:

1. Quando Montessori engravidou de Mário, ainda não era a missionária da infância e a criadora de uma abordagem revolucionária de educação. Era uma psiquiatra em início de carreira, em um país machista, conservador, e numa família que a pressionou a uma decisão difícil, com um até então parceiro que condicionou o registro da criança ao segredo de seu nascimento.

2. Assim que sua mãe faleceu e Montessori, com o filho já registrado, se viu livre das pressões que incidiam sobre ela, resgatou seu filho, sem se separar dele pelo resto de sua vida, e dedicando a ele toda a sua obra, tanto em foro privado – no início – quanto em foro público, em seu testamento. O último segmento do texto trata da relação entre Montessori e o regime fascista, e neste trecho a redação da reportagem escolheu não contar nem mesmo com trechos da entrevista de Stefano, privando-nos de qualquer referência confiável. Maria Montessori viveu na Itália durante boa parte do início do governo de Mussolini. Neste período, buscou levar de volta ao seu país o método que, originado lá e espalhado por todo o mundo, fora esquecido em sua terra natal. Uma intensa troca de cartas pontuada por espaçados encontros levou o governo fascista a participar ativamente da disseminação do método Montessori – isso, muito mais do que Montessori participar da disseminação do fascismo. Por condições que só se poderia encontrar em um regime totalitário, membros do governo fascista precisavam fazer parte de cada curso montessoriana patrocinado pelo Ministério da Educação, e na inauguração da escola de formação de professores no método Montessori até mesmo Mussolini ocupava posição honorária de destaque. Ao contrário do que propõe a reportagem, no entanto, a concessão de posições simbólicas aos membros do governo não significava que Montessori endossava as posições desse, mas tão somente que acatava concessões teóricas em nome da integridade da prática. Quando o governo começou a inviabilizar os esforços de Montessori para dar uma real ajuda ao desenvolvimento integral das crianças italianas, também começou a perseguir, vigiar e dificultar a vida pessoal e pública de formadores dos cursos de Montessori, além de seu próprio trabalho. Nesse ponto, Montessori precisou fugir para a Catalunha, local de onde recebia grande e constante apoio. Como alguém que por cinco anos se dedicou quase exclusivamente ao estudo das representações do método Montessori na mídia, eu gostaria de tecer algumas e breves observações.

Há duas maneiras de se comentar infortúnios. Uma delas nos ajuda a agir para melhorar: quando terminamos um texto apontando um caminho de mudança e esperança. A outra nos ajuda a temer, rejeitar, e não agir: quando finalizamos com decepções e finais-sem saída.

O texto da BBC, que poderia ser outro, opta pelo segundo caminho, de uma crítica sem construção, sem futuro, e sem amanhã, como se a contradição de um método que poderia alcançar todas as crianças não tivesse solução – ao mesmo tempo que, em seu miolo, por uma fala inevitável e forte da biógrafa de Montessori, este futuro é exposto com evidência. Esta redação diz mais sobre a visão de mundo do veículo do que sobre o assunto da reportagem.

A BBC é um veículo forte, grande, de enorme importância mundial. O método Montessori é uma das abordagens pedagógicas mais populares do mundo. Já há pesquisas demonstrando que o método Montessori pode inclusive ajudar crianças de realidades desiguais a terem um desenvolvimento similar em diversos aspectos – algo que não acontece com a educação convencional.

A reportagem poderia ajudar a costurar isso, e não ajuda. Maria Montessori foi uma cientista que realizou descobertas muito à frente de sua época, uma feminista com propostas de vanguarda, e uma educadora corajosa, forte e revolucionária, que com a retórica de sua fala e a potência de sua escrita exerceu não só influência sobre a educação no mundo todo, mas também colaborou para que poucos anos depois de sua morte a Declaração Universal dos Direitos da Criança fosse promulgada pela Organização das Nações Unidas, com cujos primórdios Montessori também estava envolvida.

Esta mulher, cientista, que lutou pela igualdade para a mulher, a criança e o pobre, completou 150 anos em 2020. A BBC e Irene Velasco escolheram apagar tudo isso, e construir noções seletivas e errôneas sobre a vida de Montessori, sua política e suas ideias. A mídia opera por aquilo que o teórico dos Estudos Culturais, Raymond Williams, chama de tradição seletiva

Ela primeiro tenta apagar, silenciar o que é diferente e arriscado para a forma de pensar convencional. Talvez por isso a BBC tenha demorado 5 dias além do aniversário de Montessori para dizer qualquer coisa sobre ela no Brasil. Se não consegue apagar (como não conseguiu, porque a comemoração pelos 150 anos de Montessori foi significativa demais), ela nega – isso também se mostrou impossível, porque o legado de Montessori é inegável.

Finalmente, se não pode negar, a mídia seleciona, e aí escolhe traços pertinentes de um legado, ou de uma história, ou de uma vida, para reconstruir essa história de uma maneira que apague todo o seu risco, sua diferença e novidade.

A BBC escolheu, no aniversário de 150 anos de uma das figuras mais importantes da história da educação, construir uma biografia seletiva e com falhas de pesquisa e informação, apagando o legado de Maria Montessori e confundindo seu público.

Em uma era de notícias falsas e de uma urgente reforma da escola, nós ansiamos por uma renovada posição do mesmo jornal, que é capaz de muito mais, e de influenciar seu público e o mundo de forma mais construtiva, na direção de uma realidade melhor.”

Gabriel Salomão

Doutor pela Universidade de São Paulo, com tese que disserta sobre formas como o método Montessori é escrito na mídia.

Escreveu este texto a pedido da Organização Montessori do Brasil, a qual integra.

Caso você tenha interesse em realmente saber a história da Dra. Maria Montesori, recomendo a Biografia feita no Lar Montessori neste link: https://larmontessori.com/maria-montessori-biografia-2/